Como os ratos se tornaram de estimação

Por Luiz Henrique.

Algumas pessoas os chamam de twister, ou mecol, às vezes mercol. Eu não sei e não consegui descobrir como estes nomes surgiram, mas uma coisa é certa: todos eles se referem à ratazana. “Rato” é um nome genérico que compreende muita coisa. Se pensarmos do ponto de vista da biologia, há o gênero Rattus que, sozinho, possui cerca de 300 espécies conhecidas. E segundo essa nomenclatura, camundongos não são Rattus, eles fazem parte de outro gênero (Mus). Porém, no dia a dia, chamamos ratazanas de ratos e camundongos de ratinhos. São bichinhos parecidos. Há evidências de que camundongos nos acompanham há pelo menos 10.000 anos, sendo os ratinhos mais bem conhecidos (é interessante notar que há várias espécies de camundongos). A convivência com o rato preto é bem mais recente. Normalmente, quando se fala em “rato” é o rato preto que vem à cabeça das pessoas. O nome científico dele é Rattus Rattus. É normalmente marrom, maior do que um camundongo, mas menor do que uma ratazana. É originário da Índia e Ásia central e se espalhou pela Europa durante a Idade Média. Chegou por aqui por navio e por isso às vezes é chamado de rato de navio. Por preferir lugares altos, também é conhecido por rato de telhado. Como é um pouco mais agressivo do que a ratazana, não é comum ser mantido como animal de estimação. Mas a domesticação é possível.

A nossa ratazana de estimação é cientificamente conhecida por Rattus Norvegicus. Originalmente, habitava a Ásia central, como o norte da China e Mongólia. Há uma descrição de ratos na Europa, por volta do ano de 1550, que parece ser de ratazanas (Historiae animalium, de C. Gesner, 1553), mas não é certeza. Sabe-se que elas chegaram mesmo, em grande número na Europa, por volta do ano de 1730. A versão mais aceita é a de que, depois de um terremoto fortíssimo na Ásia, em 1727, elas tenham cruzado o rio Volga, barreira natural, que nasce perto da Finlândia e deságua no mar Cáspio. Se você quer ir da Ásia para a Europa, sem morrer de frio no norte da Rússia ou enfrentar o calorão do Irã, tem que cruzar o rio Volga. Esteja certo isso ou não, o fato é que nós começamos a interagir com as ratazanas apenas após 1730. Mas, por serem parecidas com o rato preto, já eram odiadas.

Havia, na Europa, nessa época, um “esporte” chamado rat-baiting. Consistia em se colocar uma montanha de ratazanas em uma arena cercada e jogar lá um cão, geralmente um terrier, para destroçá-las. Ganhava o cãozinho que esquartejasse o maior número de indivíduos em menor tempo. As ratazanas eram preferidas ao rato preto porque são maiores e revidavam mais, dando mais emoção à empreitada. A crueldade humana nunca para de me surpreender. É nessas horas que sinto um pouco de vergonha de ser humano. Dentre as ratazanas que eram capturadas, havia algumas branquinhas, de olhos vermelhos, que além de bonitinhas, não davam uma briga tão boa quanto os outros. Algumas pessoas começaram a separar essas ratazanas e mantê-las, ao invés de jogá-las aos cães. Percebendo essa excelente fonte de indivíduos de fácil manejo, cientistas começaram a criá-las para suas experiências. Por exemplo, experiências para estudar os efeitos da privação de comida foram feitos por volta de 1830, com ratazanas. Na década de 1880 estão os primeiros estudos de genética e hereditariedade com ratos (semelhantes aos de Mendel, estudavam os padrões de pelagem). O fato é que a ratazana foi o primeiro animal a ser domesticado exclusivamente para fins científicos.

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Dr. Loki Odinson, chefe do laboratório, em sua inspeção bienal

Ninguém popularizou o uso científico das ratazanas como o Instituto Wistar, na Filadélfia. O instituto começou como um museu, em homenagem ao médico Caspar Wistar, que produziu o primeiro texto de referência em anatomia humana, dos Estados Unidos. Foi posteriormente transformado em instituto de pesquisa. Nele, começou-se a usar ratos albinos no estudo de neurologia. A necessidade de padronização levou a pesquisas de cruzamento consanguíneo. Helen Dean King começou a cruzar irmãos albinos em 1909 e isso deu origem à linhagem que hoje conhecemos como Wistar, mais especificamente, a Wistar King. Como “artigos” de alta qualidade, foram vendidos para laboratórios do mundo todo. Vez ou outra, um cientista cruzava um “Wistar” com um selvagem, para obter características um pouco diferentes daquelas encontradas nos produtos do Instituto Wistar. Cada cruzamento desses, com subsequente cruzamento consanguíneo repetido, deu origem a uma linhagem diferente. Hoje, há centenas delas pelo mundo. A própria Helen King originou a linhagem conhecida como Brown Norway. Fisicamente, eles se parecem com o Odin. Na Universidade da California, Joseph Long e Herbert Evans deram origem à linhagem Long-Evans. Eles se parecem, fisicamente, com a Sáti. Um cientista da Universidade de Wisconsin, Robert Dawley, deu origem à Sprage-Dawley. Eles são albinos, mas um pouco diferentes dos Wistar. A propósito, Phobos e Deimos são Wistar.

As linhagens de laboratório acabaram se tornando muito diferentes dos seus parentes selvagens. Um rato selvagem dificilmente se adapta ao cativeiro. Nós acabamos por selecionar os que se adaptam melhor e que são mais dóceis. Em algum momento, um cientista achou que aquele bichinho fofinho daria um bom animalzinho de estimação. Começou aí a domesticação de ratazanas como animais de estimação. As características desejáveis em uma ratazana de laboratório são diferentes das desejáveis em um bichinho de casa. Começa aí a seleção de tais características o que, gradativamente, os afastou das linhagens de laboratório. Hoje, temos três tipos de ratazanas bem diferentes: as selvagens, as de laboratório e as domésticas. O problema é que há vários trabalhos científicos sobre ratazanas selvagens, um número imenso de trabalhos sobre ratazanas de laboratório, mas poucos sobre as domésticas. O resultado disso é que conhecemos pouco as particularidades de nossas crianças. Muito do que escrevo aqui, neste blog, vem de informações obtidas com ratazanas de laboratório. Elas podem não se aplicar exatamente às domésticas, mas é o melhor que temos. Tenho procurado, eu mesmo, observar essas diferenças e levá-las em conta, quando possível. Acredito que, com a popularização de ratazanas domésticas, logo teremos tantas raças de ratos quanto temos de cães. Assim como há cães e gatos para todos os gostos, também haverá ratos.

Estudos com ratazanas foram, e ainda são, importantíssimos para a biologia e medicina. O mapeamento genético das ratazanas, comparado ao nosso e ao de camundongos, tornou possível compreender aspectos importantes da evolução natural dos mamíferos. É parte de nossa própria história sendo desvelada. Na medicina, estudos de comportamento permitem compreender melhor nossa própria mente e as semelhanças e diferenças entre nós e outros animais. Estudos farmacológicos permitem desenvolver medicamentos seguros. Eles nos ajudam a entender melhor a natureza, a nós mesmos e também a curar doenças. Como cientista, eu reconheço a importância de seu uso e vejo a imensidão de seu sacrifício. Não há como pagar a dívida que temos para com eles. Vejo também muitos problemas com isso. O primeiro deles é que a cura para muitas condições que afetam humanos e ratos é obtida primeiro em ratos. Depois ela é industrializada apenas para humanos. Nossos pequenos companheiros raramente se beneficiam de nossas descobertas. Não acho que isso seja justo. Também não concordo em provocar um problema em um rato para depois resolvê-lo. Ninguém quebraria a perna de uma outra pessoa só para ver se consegue um jeito melhor de soldar o osso. Mas nós fazemos coisas do gênero com ratos. Não bastaria pegar alguém já com a perna quebrada? Isso é só uma analogia.

Em laboratórios, há uma diretriz, chamada de “os três erres” (RRR). A sigla vem do inglês replacement (substituição), reduction (redução) e refinement (refinamento). A substituição indica que, sempre que possível, devemos substituir o uso de animais por outros métodos. Quando a substituição não for possível, a redução indica que devemos usar o menor número possível de indivíduos. O refinamento indica que devemos executar os experimentos causando o mínimo possível de desconforto ou sofrimento para os animais. No Brasil há leis que visam implementar estes conceitos. Seria muito bonito, não fosse o fato de que tudo isso é muito relativo e sujeito a interpretações. Exemplo: como determinar qual é o menor número possível de animais, sem fazer uma experiência? (O que elevaria o número de animais usados.) No refinamento, muitos laboratórios dizem obedecer esta diretriz, uma vez que não submetem animais a sofrimento desnecessário. Então eu pergunto: o que é sofrimento necessário? Precisamos de conceitos mais objetivos. Também, a lei acima dá autonomia demais às próprias instituições para interpretar o que é ou não aceitável e ignora animais que não sejam vertebrados (você pode torturar um polvo à vontade em um laboratório – essa lei não fala sobre eles). Só para colocar mais lenha na fogueira, o texto dessa lei recomenda que animais não sejam usados para fins didáticos, recorrentemente (Art. 14, §3º). No entanto, muitas universidades por aí ainda usam ratos em demonstrações de psicologia behaviorista, com fins didáticos. Isto é moralmente inaceitável. Legalmente, é difícil impedi-los, porque se escondem atrás de tecnicalidades. Se você é estudante de psicologia em uma instituição que ainda emprega ratos nessas aulas, procure a CEUA responsável e os informe que essa prática é contra a lei. Uma curiosidade sobre as experiências behavioristas. Inicialmente, usava-se cães. A crueldade de muitos procedimentos, quando levada a público, causou tanta revolta, que os estudos tiveram que ser interrompidos, em muitas universidades. A solução para isso foi o uso de ratos. Afinal, ninguém suporta ver um cãozinho sofrendo, mas um rato, quem se importa? É por isso que acho importante divulgar ratos como bichinhos de estimação. Quando a sociedade estiver mais acostumada com a ideia e isso for comum, talvez os maus tratos a ratos de laboratório se tornem tão ultrajantes quanto maus tratos a cães.

Não sou contra o uso de animais em pesquisas. Sou contra a tratá-los como escravos. No começo de nossa civilização, a escravidão era comum. Nós evoluímos. Escravizar pessoas de outro gênero tornou-se inaceitável. Depois, escravizar pessoas de outras raças tornou-se inaceitável. Falta agora tornar inaceitável escravizar pessoas de outras espécies.


Na escrita deste texto, as seguintes fontes foram consultadas:

  • Suckow, Weisbroth, Franklin – The Laboratory Rat, Elsevier AP, 2006.
  • Krinke – The Laboratory Rat, Academic Press, 2000.
  • Barnett – The Story of Rats: Their impact ou us, and our impact on them, Allen & Unwin, 2001.
  • Baker, Lindsey, Weisbroth – The Laboratory Rat, Vol. I: Biology and Diseases, Academic Press, 1979.
  • Hubrecht, Kirkwood – The UFAW Handbook on The Care and Management of Laboratory and Other Research Animals, Wiley-Backwell, 2010.
  • Miranda, Gonçalves, Miranda, Cirino – Ética em experimentação animal: reflexões sobre o laboratório didático de Análise do Comportamento, Psicologia: Teoria e Prática – 2011, 13(I):198-212.
  • Weinstock et al. – Genome sequence of the Brown Norway rat yields insights into mammalian evolution, Nature – 2004, 428:493-521.
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8 respostas a Como os ratos se tornaram de estimação

  1. Lygia diz:

    Este texto foi um dos melhores – se não o melhor e mais bem explicado – que já li sobre o assunto. E ainda assim, você explica de um jeito fácil de se entender por quem não é do meio acadêmico. Já tinha lido outros textos da página e me surpreendido com a qualidade deles; mas este realmente superou todas as expectativas. Parabéns, continue com essa qualidade por favor! =D

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  2. cara, seu blog já está nos meus favoritos, tu é fera, parabéns pelo ótimo trabalho!

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  3. Jenifer diz:

    Ótimo texto, parabens !!

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  4. Adriana diz:

    Eu acho que os ratos como animais de estimação tendem a se popularizar com a proliferação de apartamentos, porque eles são pequeninos, silenciosos, independentes e autolimpantes, ou seja, ideais para lares minúsculos. Além disso, eles dormem enquanto estamos fora trabalhando. Só espero que os donos de ratos não fiquem malucos como ficaram tantos donos de gatos e cachorros que acham que seus bichos são como aqueles dos desenhos animados, praticamente gente com cabeça de animal, pois isso só traz angústias para ambas as espécies.

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    • Olá Adriana. Fantástico seu comentário. Também acho que ratos são companhias ideais, principalmente para quem tem pouco espaço.
      O problema que cita tem nome: é a antropomorfização de outras espécies. É um problema muito sério, porque outras espécies têm necessidades muito diferentes das nossas. O fato de ratos terem comportamentos sociais e alimentares próximos aos nossos só aumenta esse risco. Como venho dizendo, ratos são pessoas, eles têm sua individualidade e personalidade. Mas não são humanos e não devem ser tratados como tal. Essa foi nossa preocupação desde o começo do blog, como você pode conferir no post “O Mundo Segundo os Ratos” https://ratodecasa.wordpress.com/2016/05/13/o-mundo-segundo-os-ratos/
      A tentativa foi de fazer uma “ratização” dos humanos, em oposição à antropomorfização dos ratos. Se humanos têm empatia, deveriam se concentrar em perceber as necessidades e peculiaridades de cada espécie com as quais convive. Uma amizade só pode perdurar quando há respeito às diferenças.

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